sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Memória

Como é que, uma quanta matéria enrugada, na nossa medula espinal, é capaz de preservar durante uma vida inteira, recordações banais da infância, e outras vezes, nem um número de telefone consegue fixar durante mais de um minuto?
Porque nos lembramos de algumas fotografias, porque nos esquecemos de outras?

A franco-algeriana, Zineb Sedira, numa margem do mar mediterrâneo, surpreendeu estes dois navios encostados. Na linha do horizonte, percebemos uma cidade, Argel? Marselha?


Zineb Sedira, "The Lovers", 2008

Uma memória de infância (preservada na medula de Sedira) - uma viajem com a mãe à Argélia – será o ponto de partida para o trabalho que agora expõe no New Art Exchange de Nottingham.

A memória é estranha e não pára de surpreender. Na sua obra magnífica – “Em Busca do Tempo Perdido”, ao narrador de Proust, bastava-lhe saborear uma pequena madalena para o transportar aos tempos passados.

Há uns meses, numa apresentação sobre Sistemas de Informação Geográfica a arte da memória, do poeta grego Simónides de Ceos, era invocada, para explicar os diversos domínios em que esta nova técnica nos pode servir. Reza então a história, que Simónides fora o único sobrevivente do desmoronamento catastrófico do telhado de um salão de banquetes na Tessália. Os cadáveres ficaram de tal maneira desfigurados que não foi possível reconhecê-los. Simónides, fechando os olhos ao caos, foi capaz de visualizar na sua mente cada convidado no respectivo lugar em redor da mesa, e identificou assim cada um dos cadáveres. Simónides, descobria uma técnica preciosa de memorização, o chamado “método dos lugares”, que se vulgarizou numa época, onde os livros rareavam, e a memória era encarada com respeito.
Hoje, com os apoios tecnológicos, desde os Sistemas de Informação Geográfica à fotografia, “para mais tarde recordar” como lembrava a Kodak, mudaram profundamente a nossa forma de memorizar.

Em japonês, shashin, é o termo que designa fotografia. Muito antes da invenção de Niepce, no século VIII, o termo shashin, era utilizado pela primeira vez num texto de um poeta chinês, Tang Du Fu, que etimologicamente significa, “reprodução do real”. No Ocidente, é do grego que nasce o termo fotografia, e etimologicamente significa “desenhar com a luz”. Na cultura Ocidental, é a primeira - a ideia de que a fotografia é a reprodução do real - que prevalecerá, embora houve quem logo dissesse que a fotografia não era a reprodução do real, mas artifício de uma óptica submetida à perspectiva albertiniana. O certo é que, para a maioria das pessoas, com a nova invenção, o passado passava a ser tão seguro como o presente, aquilo que se via no papel era tão real, como aquilo que se palpava. Para o narrador de Proust, a fotografia dava-lhe uma sensação tão segura como a recordação. Um dia, ao baixar-se para se descalçar, no seu quarto, no Grand Hotel de Balbec, viu bruscamente na sua memória, a última fotografia que Saint-Loup tirara à sua avó, e “cuja realidade viva eu encontrava pela primeira vez numa recordação involuntária e completa”. Nobuyoshi Araki, numa entrevista que deu há dias, (Art Press, Fevereiro 2009), recorda-se da última fotografia que tirou ao seu pai : “se não lhe tirasse uma fotografia, iria esquecê-lo, mas ao fotografa-lo, ficará para sempre na minha memória”.

No país do shashin, gravadas na memória, ficaram as palavras do imperador Hirohito, quando, a 15 de Agosto de 1945, declarava ao mundo a rendição do Japão : “temos de suportar o insuportável”, e o insuportável foi fotografado para que ficasse na memória colectiva. Olhar para as fotografias da tragédia, dos corpos destroçados, interessa-nos porque nos interessamos pelo mundo, mas os efeitos da destruição, demasiado impressivos, são consumidos no instante e rapidamente nos esquecemos, porque a simples repetição do real, embota e cansa a sensibilidade. Porém, “são os traços fugidios que acabam por se revelar os mais perduráveis”, ensina-nos Shomei Tomatsu, que em 1961, fotografou, a inesquecível garrafa derretida e deformada pela bomba atómica. Trinta anos depois, Hiroshi Sugimoto, nas suas séries intemporais, fotografa um tempo, mas um tempo agora anterior à memória para superar o insuportável.

Só memorizamos as fotografias que nos ensinam ou fazem pensar, e isso acontece, quando a fotografia se anula enquanto reprodução do real e passa a ser a própria coisa.

Proust entendeu-o, e Charlus, no salão da Madame Villeparisis, em conversa com a sua prima Clara de Chimay clarifica: “Ao mostrar coisas que já não existem, a fotografia deixou de ser uma mera reprodução do real e adquiriu a dignidade que lhe faltava”.


Zineb Sedira, "Haunted House II", 2006

Nesta mansão em Argel, Sedira, mostra-nos coisas que já não existem. A casa, construída nos anos de 1930, por arquitectos franceses, mesmo em ruínas que ainda se mantêm, o que nos chama a atenção, o que já não existe, é a decoração árabe do passado que ainda vemos num dos torreões.

No trabalho de Sedira, que nasceu em França, mas é filha de emigrantes argelinos, a procura da identidade, é o seu tema central.
A bordo de um navio, no mediterrâneo, no mar que une Argel e Marselha,






Zineb Sedira, "Middle Sea", 2008

numa conjugação harmoniosa entre passado e presente, evoca, ao percorrer o mesmo caminho, de mais de um milhão de pessoas, que foi a descolonização da Argélia, as memórias de um êxodo, mas simultaneamente, no presente, ao fazer o trajecto, evoca, as boas relações das duas nações, que depois de terem lutado durante tanto tempo e tão duramente, servem de exemplo, sendo, para muitos, um caso excepcional em geopolítica.

Argel, Marselha e o mediterrâneo que as une, a resposta da identidade que procura.

Na Antiguidade, onde os livros rareavam, Simónides, através da memória interna, identificava os corpos desfigurados pelo fogo. Na actualidade, submersos num excesso de informação, onde dificilmente distinguimos o banal do importante, a fotografia, uma memória externa, quando é boa, deixa que os pormenores importantes da vida não sejam esquecidos e nos subam à consciência.

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