terça-feira, março 11, 2008

Fotografia Científica (III)

Depois de três posts seguidos sobre Fotografia Política, (se assim se pode chamar), retomo a Fotografia Científica que deixei lá para trás.
Hoje de tão absorvidos que estamos na Fotografia dita Artística, a que se mostra nas galerias e museus e que se compra por preços exorbitantes, esquecemo-nos muitas vezes, que a fotografia foi uma dádiva da ciência. William Fox Talbot (1800-1877), inventor do método negativo-positivo, e John Herschel (1792-1871), descobridor da técnica de fixação das imagens, foram cientistas distintos, membros da Royal Society. Mas para Talbot, a nova técnica nascia também para responder a algumas questões relacionadas com a arte. “The Pencil of Nature”, o seu primeiro livro com imagens fotográficas, a Natureza desenhava-se a si própria. A luz do sol, substituía o desenho manual feito pelo homem, e o sol, não se esquecia de reproduzir todos os detalhes e interiorizou-se que a fotografia era a cópia fiel da Natureza. O homem ficou espantado porque passou a ver coisas que não via, e os cientistas cedo perceberam o valor da fotografia. A necessidade de ver cada vez mais e mais longe, uma ânsia natural do homem, impôs o desenvolvimento da fotografia científica. Se no primeiro post falámos dos mundos invisíveis da microscopia e dos mundos infinitos da astronomia, a conquista de fixar o movimento acabou por ocupar o segundo.
Hoje abordaremos outros temas e começamos com os desenhos fotogénicos ou as fotografias feitas sem máquina. Muitas das fotografias de Talbot foram feitas sem máquina.

William H. Fox Talbot, desenho fotogénico, c. 1835-39
William H. Fox Talbot, desenho fotogénico, 1839
Em cima de um papel sensibilizado, colocava objectos planos, como folhas de plantas, ervas, flores…que sob a acção da luz deixavam as suas impressões digitais no papel. Para os botânicos, (a botânica uma ciência moderna na época vitoriana onde em Kew, nos arredores de Londres, hoje se podem visitar os famosos jardins botânicos reais da época), habituados aos vegetais secos dos ervanários, viram nos desenhos fotogénicos um meio excelente de conservar as espécies. O próprio Talbot lançou a ideia de se publicar um álbum de todos os vegetais existentes na sua Inglaterra. Mas foi uma mulher, Anna Atkins (1799-1871), sua compatriota que a concretizou ao publicar 389 cianotipos de algas inglesas em álbuns.
Anna Atkins, Woodsia hyperborea, 1853
Atkins, membro da Botanical Society de Londres, utilizava os desenhos fotogénicos para ilustrar os seus trabalhos científicos.
Na actualidade David Stephenson fotografa folhas de árvores fragilizadas pela sede, e que mesmo mortas, servem de alimento aos insectos.
David Stephenson, Mangée nº35, 2002
Em relação aos desenhos fotogénicos, às imagens sem máquina, Françoise Paviot, na sua visita guiada, mostra-nos uma imagem fantástica do século XIX feita directamente a partir de um corpo humano. Actualmente o australiano Harry Nankin, faz o mesmo mas com a Natureza, e através de enormes folhas de papel fotográfico, Nankin abraça a Natureza e a paisagem fotografa-se a si própria.
Harry Nankin, Rain 5
Harry Nankin, Rain 3
Mas olhemos para outra ciência, a geologia, que tal como a botânica foi outra das grandes ciências do século XIX. O homem, sempre curioso, pretendia a partir das formações geológicas conhecer a idade e a formação da terra. Aimé Civiale (1821-1893), fotografou os cumes alpinos com um rigor de cientista: calculava a mudança relativa do sol e da sua câmara, respeitava as condições de altitude, ajustava na horizontal o eixo óptico da câmara e não deixava nenhuma lacuna entre as imagens que depois montava. As suas vistas panorâmicas dos Alpes, algumas com 4 m de comprimento, destinavam-se a apoiar os geólogos, geógrafos e também visavam apoiar a teoria de Élie de Beaumont, a qual acreditava que o arrefecimento da terra causara enormes tensões que deformaram a crosta terrestre fazendo emergir as cadeias montanhosas.
Aimé Civiale, Vista panorâmica da Maladetta realizada para estudos geográficos, 1866
Aimé Civiale, Vista panorâmica da Maladetta, realizada para estudos geográficos, 1866
Mas a fotografia geológica e topográfica estava condenada a mostrar a terra plana, em duas dimensões. Na actualidade, os sistemas de informação geográfica, SIG, dão-nos imagens em 3D, que conjugam, como vemos nestes exemplos, ortofotomapas com extrusão de edifícios.
Aeroporto de Lisboa
Vista de Lisboa
Se no século XIX a fotografia era considerada cópia da Natureza, hoje, os sistemas SIG, ultrapassam em muito o poder da fotografia, pois para além das imagens em 3D, introduzem mais uma variável que a fotografia nunca conseguiu - o tempo real.
Níveis de humidade

A arte é subjectiva, a ciência é objectiva, este é um postulado que nos habituámos a repetir sem grande reflexão. Mas a ciência não procura apenas verdades absolutas, coloca problemas e neste ponto, aproxima-se mais do que nunca de uma posição criativa. Como escreveu Einstein, “a experiência mais bela que podemos ter é a criação do mistério: é a emoção fundamental que está na raiz da verdadeira arte e da verdadeira ciência, quem não a experimentou já não sabe como se maravilhar, é como se estivesse morto, com os olhos baços”. Mas porque será que a ciência e arte nos parecem irreconciliáveis? Será que sempre foi assim?
A fotografia, “filha da ciência e da arte”, foi talvez a que melhor soube reconciliar objectividade com subjectividade. No século XIX, o médico Guillaume Benjamin Duchenne de Boulogne (1806-1875), submetia os músculos da cara dos seus pacientes a choques eléctricos. Procurava, como ele escreveu, “uma linguagem da alma”.
Guillaume Duchenne de Boulogne, c. 1852-56
Os resultados das suas experiências foram tão diferentes, tão inesperados que precisou da fotografia, “tão fiel como o espelho”, para servir de testemunho. “Analyse électro-physiologique de l’expression dês passions” publicado em 1862, era acompanhado por numerosas imagens fotográficas, 16 por estampa, que o próprio tirara. Duchenne de Boulogne, o médico, o homem das ciências, não via fronteira entre ciência e a arte, e no seu livro ambas foram importantes “l’une et l’autre réunissant, autant que possible, l’ensemble dês conditions qui constituent le beau, au point de vue plastique”. E de facto, nalgumas das suas estampas, que ilustravam os vários sentimentos humanos: dor, alegria, tristeza, raiva…comparava fotografias dos seus pacientes submetidos aos choques eléctricos com fotografias de várias esculturas, que mostravam esses mesmos sentimentos.
Guillaume Duchenne de Boulogne, c.1852-56

Na actualidade, Marta Menezes, (n.1975), explora o conhecimento científico na sua prática artística. A Biologia, a Genética ou a Neurologia os suportes da sua produção. O seu estúdio radica-se nos laboratórios de investigação científica por onde passa, e a sua matéria-prima: o DNA, proteínas, células e organismos. Numa entrevista recente disse: “não tenho a menor dúvida de aquilo que faço é arte. Porque os meus objectivos são completamente diferentes dos de um cientista. Qualquer cientista diria que o que faço não é ciência: não repito a experiência, não procuro descobrir as causas, não me interessam as conclusões. Preciso apenas que aconteça uma vez. Isto é completamente contrário ao espírito científico”, contudo os cientistas só têm a ganhar com este tipo de trabalho, “como não estamos presos ao sistematismo da ciência, podemos experimentar hipóteses que eles nem sequer consideram”, comenta. Em 2003, a Fundação Calouste Gulbenkian, no projecto “Sete artistas ao décimo mês”, comissariada por Miguel Amado, mostrou um trabalho de Menezes utilizando uma tecnologia científica recente conhecida por fMRI – functional Magnetic Resonance Imaging.
Marta Menezes, fMRI, 2003
Através desta técnica de imagiologia, que utiliza um equipamento de ressonância magnética, víamos projectados em dois ecrãs o fluxo sanguíneo a irrigar o cérebro e as regiões activas durante duas tarefas distintas desempenhadas por Menezes: numa projecção víamos as regiões que eram activadas no cérebro de Menezes quando desenhava de memória o jardim da Gulbenkian, no outro ecrã, viam-se as regiões activadas no cérebro de Menezes quando desenhava o mesmo jardim a partir de uma fotografia.
Marta Menezes, 2003
Marta Menezes, 2003
Recordar e copiar, são duas acções distintas, como nos comprova esta experiência, e duas acções invisíveis até à bem pouco tempo.

E mais uma vez a fotografia científica teima em ficar…

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