segunda-feira, fevereiro 04, 2008

O mistério das malas de Robert Capa

Robert Capa em Espanha, 1936, fotografia atribuída a Gerda Taro

Há uns anos em Paris, o tempo de espera para ver a exposição “Matisse/Picasso” era de duas horas, não muito longe do Grand Palais, na Biblioteca Nacional, duas horas era o tempo para quem queria ver a exposição “Robert Capa”. Capa o fotógrafo, Picasso o pintor, hoje internacionalmente conhecidos, deixaram para a história o símbolo do horror da guerra civil espanhola. Capa com “The Falling soldier”, tirada em 1936 perto de Córdova,
Robert Capa, "The Falling soldier", Cerro Muriano, Córdova, 5 de Setembro de 1936
Picasso com a sua “Guernica” pintada no ano de 1937.
Picasso, Guernica, 1937

Em Julho de 1936 uma sangrenta guerra civil eclodia em Espanha. Republicanos e Nacionalistas num combate violento dividem o país, e no seio de muitas famílias, republicanos e nacionalistas olham-se não como parentes mas com ódio de morte.

Na semana que passou, o New York Times e dois periódicos espanhois noticiavam a recuperação, pela insistência da International Center of Photography (veja aqui fotografias de uma recente exposição), de três malas
com milhares de negativos da guerra civil espanhola atribuídos a Robert Capa, Gerda Taro e algumas de David Seymour.

Não é a primeira vez que malas com negativos e fotografias de Capa são alvo de notícia e sempre que se descobrem misteriosas malas com fotografias e negativos atribuídos a Capa, os jornais deliciam-se em duvidar sobre a veracidade da fotografia “The Falling soldier”. A notícia agora divulgada no New York Times repete a história: “será que entre estes milhares de negativos estará o negativo de “The Falling soldier”? Será que se pode pôr um ponto final nesta história?” Mas acrescentam agora uma outra dúvida, “será que “The Falling soldier” seja de Taro e não de Capa?” Especulações que excitam muita gente.

O húngaro e judeu, Robert Capa, deixa Paris quando as tropas da Wehrmacht se aproximam da cidade. Para trás deixa o seu estúdio mas, entretanto, enche também uma mala com negativos, quase todos da guerra civil espanhola, e entrega-a a um amigo, seu conterrâneo e também judeu. O amigo, hoje a viver sob o anonimato no México, vai para Bordéus à espera de um transatlântico mas, com receio de também ser apanhado, entrega a mala a um Chileno, também amigo de Capa, que promete guardá-la num local seguro em Nice ou Marselha. Esta recambolesca história li-a há muitos anos, 1983, na revista American Photographer. A revista voltava à história das malas de Capa no ano em que a revista francesa Photo publicava várias fotografias suas da guerra civil espanhola que um fotógrafo da Magnum, Bernard Matussiére,
Fotografia publicada no American Photography, Outubro 1983
encontrara no sotão da sua casa. A primeira página do artigo da Photo era ilustrada com esta fotografia fantástica de Capa tirada em Barcelona, cidade que no final da guerra sofreria terríveis raids aéreos:
Robert Capa, Barcelona, Agosto 1936
Capa fotografou Barcelona ainda ocupada pelos republicanos
Robert Capa, Barcelona, 13 de Janeiro, 1939
Robert Capa, Barcelona, Janeiro, 1939
_ cairia nas mãos dos nacionalistas pouco tempo depois, a 26 de Janeiro de 1939.
Será que a mala afinal seguiu no transatlântico para o México, como agora parece comprovar a história divulgada pelo New York Times?

Em 1983 não era contudo a primeira vez que as malas de Capa vinham à baila, pois nos finais dos anos 70, uma mala com 97 fotografias de Capa, da guerra civil espanhola era encontrada no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Suécia. A mala pertencera ao ex-Primeiro Ministro do governo Republicano, Juan Negrín, que substituira Largo Caballero em Maio de 1937, quando este se demitiu recusando a alinhar com os comunistas. Hoje estas 97 fotografias pertencem ao Arquivo Histórico Nacional de Salamanca.
Robert Capa, Farmácia Globo, Madrid, 1937, do Arquivo Histórico Nacional de Salamanca

Se dias depois da tomada de Barcelona as tropas de Franco chegavam à fronteira francesa, levando o Presidente Azaña e o General Vicente Rojo a desistir, Negrín julgou possível prolongar a resistência e, em 4 de Março, Madrid era ainda alvo de combates violentes entre as tropas do Coronel Cascado e as tropas de Negrín.
Robert Capa, Madrid, Novembro-Dezembro 1936
A 28 de Março de 1939, Madrid é tomada pelos nacionalistas e, dois dias depois, a 1 de Abril, Franco proclama a vitória. A guerra acabava.
Capa terminou a reportagem da guerra civil a fotografar os exilados no campo de refugiados perto de Perpignan.
Robert Capa, Argelès-sur-Mer, França, Março 1939
Robert Capa, Argelès-sur-mer, França, Março, 1939

Foi a revista francesa “VU”, dirigida por Lucien Vogel, que a 23 de Setembro de 1936, publicava pela primeira vez “The Falling soldier”.
Passados uns meses, a 12 de Julho de 1937, é a vez da revista Life publicar a mesma fotografia. E enquanto durou, jornais e revistas de todo o mundo ilustravam a guerra com as fotografias de Capa. Em Dezembro de 1938 a prestigiada revista inglesa Picture Post dedicava 11 páginas com fotografias de Capa e proclamava-o “The greatest War Photographer in the world”.
Durante anos ninguém duvidou se a fotografia do soldado republicano a cair, atingido por uma bala, era ou não encenada. Mas a inveja é terrível e na década de 70, jornalistas ingleses baseados em informações de um fotojornalista do London Daily Express, O’Dowd Gallagher, que também cobrira a guerra civil, vinham dizer que a fotografia de Capa era encenada. Em 1985, no Festival Internacional de Fotografia de Arles, circulava a notícia que o soldado de “The Falling soldier”, estava vivo e residia na Venuzuela. Richard Whelan, que em 1985 publicava a biografia de Capa, tenta repor a verdade. Durante anos investiga a vida do fotógrafo e concluiu que o soldado da célebre fotografia era Frederico Borell García, militante da Confederación Nacional del trabajo, CNT, uma poderosa organização anarquista.
Robert Capa, Untitled, Cerro Muriano, Córdova, 5 de Setembro, 1936
A família comprova que Frederico Garcia morrera em combate em Cerro Muriano no dia 5 de Setembro de 1936. Os negativos dessa reportagem são enviados por Capa para o seu assistente, Csiki Weiss, que confirma a Whelan que “The Falling soldier” seguia no conjunto de outros negativos desse mesmo dia.
Robert Capa, sequência, Cerro Muriano, Córdova, 5 de Setembro, 1936
“Era normal nesse tempo cortarmos os negativos”, diz Weiss. Em relação a Gallagher, Whelan concluiu que este só conhecera Capa anos mais tarde, já no final da guerra. Mas para refutar definitivamente tão absurda sugestão, Whelan pede a um perito em homicídios, Robert L. Franks, para analisar a fotografia. Franks concluiu que seria impossível alguém encenar tal fotografia, pois a mão esquerda, que mal se vê debaixo da perna, mostra que a mão está praticamente fechada, “se Garcia estivesse a encenar, a mão estaria aberta para amparar a queda”, diz Franks.

As conclusões de Whelan, que morreu no ano passado, parecem não convencer os jornalistas que insistem mais uma vez na dúvida.

Foi Robert Capa que teve a ideia de criar a agência Magnum, e com mais quatro colegas, em 1946, surgia a ainda hoje mítica agência. Num 4º andar, no nº 125 da rue du Faubourg Saint-Honoré, o local do escritório em Paris. Mas era no Bistrot da esquina, dessa mesma rua, que Capa preferia reunir os membros, onde com eles planeava as viagens. Viajar, cobrir os acontecimentos do mundo era o seu projecto. “If your pictures aren’t good enough, you’re not close enough”, a máxima de Capa. Para Capa, fazer reportagens para a Life aborreciam-no, pois esse homem, enérgico e cheio de vitalidade, vivia para mostrar ao mundo as guerras que o assolavam. Era o seu modo de vida. A 25 de Maio 1954 morreria, na Indochina, desfeito ao pisar inadvertidamente uma mina. Enquanto viveu, nunca recuperou o desgosto da morte da sua amada, Gerda Taro, que morreria na guerra civil espanhola. Disse mais tarde que fotografara a guerra nas trincheiras de Cerro Muriano. Negaria Capa que a fotografia “The Falling soldier” era de Gerda? E será que Capa, o fotógrafo que morreria pela guerra, capaz de encenar uma fotografia de guerra?. Não tenho dúvidas em dizer que Frederico Garcia morreu e que Capa, na trincheira, tirava sem o saber, o momento crucial da morte desse militante.

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