quarta-feira, março 21, 2007

Francis Frith e Edward Burtynsky

Escrevo novamente a propósito da exposição INGenuidades, Fotografia e Engenharia 1846-2006, e não será a última, ao revisitá-la encontro sempre novos estímulos. Olhemos hoje para um detalhe, as duas fotografias que Jorge Calado, comissário da exposição, escolheu da China.
O número de fotografias com que a China está representada na exposição, duas, é insignificante se compararmos com o número de fotografias da Austrália ou Estados Unidos. Numa exposição tão vasta como esta, 350 fotografias no total, duas fotografias serão suficientes para representar um país que se destrói e reconstrói a uma velocidade estonteante e cujas transformações por si só poderiam representar todas as engenharias?

Ambas as fotografias da China são tiradas por estrangeiros: Francis Frith (1822-1898, Chesterfiled) e Edward Burtynsky (1955, Ontário). Tão distantes no tempo, é necessário transpôr o século o XX para as ligar, nenhuma delas entra nas engenharias da exposição.

A de Frith encontramo-la nas Grandes Maravilhas, onde se lê “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce” de Fernando Pessoa.
É uma vista A Grande Muralha da China.
Francis Frith, A Grande Muralha da China, c.1860
Calado enquadra esta grande maravilha entre outras duas grandes maravilhas, a ópera de Sydney, onde vemos a maquete e ouvimos o relato da sua construção, e O Passeio dos Arcos do Aqueduto das Águas Livres, de Paulo Guedes c. 1912.
A outra, a de Burtynsky, encontramo-la no tema Água, o elemento regenerador da vida.
A fotografia, Projecto da Barragem das três Gargantas, Feng Jie #5, ainda sem água, é colocada ao lado de Enchendo a barragem de Murchison na Tasmânia de David Stephenson ,1982.
A fotografia de Frith lembra-me a história que Douglas Crimp conta no seu artigo, The Museum’s Old/ The Library’s New Subject, sobre o trabalho de Julia von Haaften na New York Public Library. Ao interessar-se por fotografia Haaften descobre que a biblioteca possui múltiplos livros com fotografias originais, especialmente do século XIX. Ocorre-lhe então a ideia de organizar uma exposição e reúne então uma série de fotografias retiradas de livros sobre a Terra Santa, América Central, castelos arruinados em Inglaterra, livros de etnografia e geologia... Durante a preparação, a direcção da Biblioteca descobre que possuiu uma vasta e valiosa colecção de fotografia. Nunca ninguém tinha feito o inventário de todo aquele material disperso. “Se na actualidade”, escreve Crimp, “livros com fotografias originais como os de Maxime du Camp ou Francis Frith podem valer uma pequena fortuna, na altura nem sequer eram postos na secção de livros raros”.
O interessante é a reclassificação da Biblioteca depois deste trabalho de Haaften. O que antes estava na secção judia sob a classificação de Jerusalém, está agora na secção de arte na categoria de Auguste Salzmann, o que antes era Egipto está agora classificado como Beato, Maxime du Camp, Francis Frith, o que antes era Alpes Suiços é agora irmãos Bisson e assim por diante... ou seja, as buscas são agora feitas em nome dos fotógrafos e não dos locais fotografados.
“O que fez Haaften na biblioteca pública de Nova Iorque é só um exemplo do que ocorre na nossa cultura em grande escala”, continua Crimp. Os livros sobre o Egipto, país onde Francis Frith fez mais expedições e editou mais de sete álbuns fotográficos, são agora desmantelados para que as suas fotografias se possam exibir nos museus.
Francis Frith, RamesesII em Abou Simbel Vol III, 1857
É o que acontece com a fotografia A Grande Muralha da China, hoje exposta na Fundação Gulbenkian, e que está fora do seu contexto. A Grande Muralha era mais uma vista de um álbum fotográfico sobre a China, que a empresa F.Frith & Co, comercializava. Uma vez nos museus, conclui Crimp, o campo plural da fotografia está agora reduzido a uma única estética.

O artigo de Crimp é de 1981, época em que a fotografia começava a entrar nos museus. Ao fim de trinta anos o panorama é bastante diferente, hoje é raro um museu não ter fotografias na sua colecção.
A visibilidade dos trabalhos fotográficos faz-se hoje através de livros,
exposições e internet.
Exposição de Edward Burtynsky em 2005, Canadá

Se Crimp no artigo alertava para o risco de a fotografia ao entrar no museu ficar enclasurada e reduzida aos valores estéticos, o trabalho de Burtynsky não lhe dá razão, o carácter informativo das suas fotografias prevalece.
Burtynsky trabalha com séries que abrangem vários temas que afectam o nosso planeta, refinarias, campos de petróleo, contentores, desmantelamento de navios, minas...estas últimas podemos ver na exposição.
A sua série sobre a China, é iniciada em 2002. Burtynsky mostra a industrialização galopante e os seus efeitos na paisagem e nos habitantes. De tão vasto, Burtynsky sub-divide este enorme território em vários temas: cidades e urbanismo,
E.Burtynsky, City#2 Nanpu Bridge Interchang, Shangai, China 2004
E.Burtynsky, Urban Renewal #10, Shangai China 2004
produção industrial,
E.Burtynsky, Manufacturing #17, Deda Chicken Processing Plant Dehui City, Province China 2005
aço e carvão,
E.Burtynsky, Bao Steel #9 Shangai, China 2005
estaleiros,
E.Burtynsky, Shipyard#14, Qili Port, Zhejiang Province, China 2005
reciclagem,
E.Burtynsky, China Recycling#15, Cankun Aluminum, Xiamen City, Fujian Province, 2005
construção de barragens... é nesta última que se insere o trabalho Projecto da Barragem das três Gargantas Feng Jie #5, Rio Yangtsé.
E.Burtynsky, Projecto da Barragem das três Gargantas Feng Jie#5, Rio Yangtsé, China 2002
A série de Feng Jie é composta por dez fotografias, as fotografias que se seguem são de Feng Jie #1 a #10 de Burtynsky e do Projecto da Barragem das três Gargantas:
Ao olharmos para as fotografias de Burtynsky sobre a China todas as engenharias estão representadas.

Calado escolhe só duas fotografias para a China: A Grande Muralha da China, símbolo da sua história, e Projecto da Barragem das três Garagantas Feng Jie #5, construção monumental para uma melhor gestão de um bem que escasseia, a água.
É na dualidade, da explosiva expansão económica simultânea com a perca das tradições, que a nova geração de artistas chineses se exprime. Calado mostra separadamente esta dualidade, os valores históricos do país e as construções monumentais em curso. Não eram precisas mais.

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